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Mesmo sem políticas públicas específicas, agricultoras se destacam na produção de alimentos


A produção de alimentos é apontada pelo senso comum como algo naturalmente masculino. Mas, nesse Dia Internacional da Mulher, celebrado no 8 de março, reforça-se a importância e urgência de refletir sobre as verdadeiras protagonistas desse trabalho, as mulheres. O trabalho das agricultoras, que produzem comida durante o ano todo, tem se tornado cada dia mais reconhecido, principalmente no contexto da pandemia, onde a fome assola a população brasileira.


De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 19% das áreas rurais são administradas por mulheres, ou seja, dos 5,07 milhões de estabelecimentos rurais, 947 mil são coordenados e mantidos por elas. Entretanto, esse número poderia ser muito maior, já que, por reflexo do machismo, muitas mulheres que lideram a produção em suas propriedades não estão registradas como proprietárias das terras que administram.


Apesar do aumento dos números em 2017 em relação ao censo de 2006, onde as agricultoras representavam 12,7% no cuidado com a terra e a produção de alimentos, ainda há muitos desafios a serem superados para garantir a qualidade de vida, a elevação da autoestima, a igualdade de gênero, a autonomia e a produção diversificada de alimentos, principalmente das mulheres da agricultura familiar, assentadas e acampadas, faxinalenses, indígenas e quilombolas.


Um levantamento realizado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), em 2020, mostra que a atividade das mulheres na agricultura familiar chega a 80% em comparação à masculina em 2019. Segundo a pesquisa, a maior presença feminina foi registrada na agricultura familiar, seguida dos assentamentos da reforma agrária, quilombos, agroextrativismo, pesca artesanal e comunidades indígenas.


Esses dados demonstram que são as mulheres que cuidam da terra, das águas e das sementes, garantindo a soberania e a segurança alimentar e nutricional de suas famílias e da sociedade em geral, já que de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), 70% dos alimentos consumidos no Brasil são produzidos pela agricultura familiar. Assim, fica claro que o papel da mulher camponesa vai muito além dos trabalhos domésticos e de cuidados com as crianças, pessoas idosas ou doentes.


Para a agricultora e integrante do Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) no Paraná, Ana Claudia Rauber, as mulheres têm papel histórico na preservação das sementes e na produção de alimentos saudáveis.


“As mulheres apresentam papel fundamental para a conservação das sementes e, consequentemente, para a produção de alimentos saudáveis. Aliás, foram as mulheres que resistiram historicamente aos impactos trazidos a partir da Revolução Verde, principalmente quanto à substituição das sementes por outras “melhoradas” e até transgênicas, quando guardaram quase de forma clandestina, escondida, ali enrolada num pedacinho de pano a preciosidade chamada semente crioula. Desde a Revolução Verde mantiveram suas hortas, pomares, roças de forma diversificada e livre de químicos, e hoje continuam lutando por agroecologia e soberania alimentar, reconhecendo a importância da produção dos alimentos saudáveis a partir das sementes crioulas”, comenta.


Ao tratar da produção de alimentos saudáveis, não são poucas as lutas para superar as dificuldades que as camponesas enfrentam no dia a dia. Além de ter que lidar com as mudanças climáticas, o risco de contaminação por agrotóxicos e transgênicos nas sementes e plantações, e a falta de reconhecimento do protagonismo na manutenção e geração de renda, as agricultoras ainda precisam lidar com a escassez de investimentos em políticas públicas específicas para elas na agricultura familiar.


Ausência de medidas governamentais voltados para as agriculturas

Dentre as políticas públicas destinadas para a agricultura familiar, como a de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), Programa Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), a única ação do Estado que é exclusiva para as agricultoras é o Pronaf Mulher, um subprograma que integra o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).


O Pronaf Mulher, criado em 2003, possibilitou que as agricultoras tivessem acesso a recursos para melhorar e investir em novas atividades produtivas, além de garantir a expansão da diversidade de alimentos. Essa linha de crédito reconheceu as mulheres como protagonistas na produção de alimentos, potencializou a inclusão delas no processo produtivo, gerou renda, ampliando a autonomia feminina no campo.


Contudo, para atender todas as linhas de crédito do Pronaf, foram anunciados no Plano Safra 2020/2021, pela atual gestão, R$33 bilhões para os pequenos produtores. Porém, pela primeira vez após 20 anos desde a criação do Programa, não foi divulgado nenhum pacote exclusivo de políticas públicas para o fortalecimento da agricultura familiar. A justificativa para isso foi a existência de uma “única agricultura” no Brasil, o que demonstra um retrocesso, colocando em xeque a conquista e a continuidade do Pronaf, inclusive a linha de crédito específica para as mulheres agricultoras.


Os recursos públicos destinados para criar condições e incentivar a agricultura familiar a produzir alimentos para a população brasileira, vem sofrendo um grave desmonte e sucateamento por parte do Estado desde a mudança no cenário político em 2016. Podemos citar como exemplos, a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrária (MDA), a redução drástica no orçamento do PAA Alimentos que teve em 2012 um montante de R$587 milhões atendendo 128,804 famílias, já em 2019, foram 41,3 milhões para 5.885 famílias, e recentemente o veto ao auxílio emergencial para os agricultores familiares nesse momento de pandemia, que atenderia inclusive as mulheres.


Essas ações demonstram que governo vem retirando sua responsabilidade perante a promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional da população, o que levou o Brasil a voltar a passos largos para o Mapa da Fome em 2018, do qual havia saído em 2014.


Além de garantir alimentos à mesa, as políticas públicas também viabilizam a independência financeira das mulheres, o que assegura até mesmo o enfrentamento à violência sofrida por elas. Ter autonomia financeira também proporciona às agricultoras a elevação da autoestima e maior possibilidade de rompimento de vínculo com relacionamentos agressivos. Segundo Ana Claudia, a autoestima das camponesas tem melhorado bastante, entretanto precisa ser trabalhada diariamente, e que para isso é preciso superar alguns estereótipos e preconceitos construídos ao longo da história.


“A autoestima das agricultoras é algo que está em construção, já que considera vários fatores, talvez o mais importante seria o reconhecimento enquanto camponesas, que é algo a princípio negativo, desde as histórias do Jeca Tatu. Esta representação colocava os sujeitos do campo como inferiores. Então, é preciso quebrar tudo isso. É preciso olhar para si, se valorizar enquanto mulher camponesa, de reconhecer a importância do trabalho para a produção de alimentos e manutenção da vida, o reconhecimento da identidade camponesa. Por aí começa a elevar a autoestima da mulher camponesa”, ressalta.

Trabalho para além da vida privada

O protagonismo das mulheres na produção de alimentos evidencia o papel delas na manutenção da vida. Entretanto, historicamente elas foram invisibilizadas, cabendo obrigatoriamente às mulheres apenas os trabalhos de cuidados com a casa e outras pessoas, onde o único espaço a ser ocupado era de uma atividade que não era nem reconhecida como trabalho. Nesse contexto, o direito de participação em diferentes espaços sociais organizativos ainda é muitas vezes negado para o público feminino.


Um exemplo nítido disso é a atuação nas associações e cooperativas das suas comunidades. Dados do IBGE, apresentados no Censo Agropecuário de 2017, evidenciam a disparidade da participação das mulheres e homens associados às cooperativas. Enquanto eles somam 91,3% do total de associados destes espaços, elas ainda são apenas 8,7%.


Para Antonia Capitani, agricultora e moradora do Assentamento Contestado, no município da Lapa, sul do Paraná, as mulheres camponesas têm conquistado espaços importantes em diferentes áreas, mas ainda há muito o que se avançar no direito de participação.


“Até uma época as mulheres não tinham nenhum direito, não podiam votar, não tinham acesso à terra, não podiam estudar, na agricultura nem sequer podiam ter a nota de produtora, sempre era dos homens esse direito. Isso tem mudado. Hoje temos mulheres dirigentes e coordenadoras nas comunidades, atuando na educação, saúde, em toda parte, até os projetos de produção, como, por exemplo, o PNAE, atualmente muitos estão no nome da mulher. Temos conquistado alguns espaços, não é igual aos homens, mas estamos devagarzinho ocupando espaços que são nossos por direito”, afirma.


A privação do acesso à terra é um fator que tradicionalmente limita a atuação das mulheres. Na grande maioria das vezes o título da terra fica no nome do patriarca da família (pai, marido ou irmão), o que acaba restringindo o direito da mulher de opinar sobre a produção e a possibilidade de implantar novas práticas agrícolas. Além do mais, quem tem o título formal da posse é quem determina quais são as atividades que serão desenvolvidas, tornando o trabalho da mulher apenas como coadjuvante, sem uma participação ativa nas tomadas de decisão. Quando elas conseguem um pequeno espaço de terra, normalmente essas são destinadas para a plantação das “miudezas”.


Atualmente, o título e concessão de uso da terra, podem ser conferidos ao homem, à mulher, ou ao casal, porém tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 810/20, que obriga o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a adotar medidas para estimular e facilitar a titulação de terras em nome de mulheres trabalhadoras rurais familiares, o que pode alavancar o número de terras no nome das mulheres.


Outro fator limitante na autonomia das mulheres é o acesso à tecnologia adequada para se trabalhar em pequenos espaços e com maior diversificação, já que as tecnologias existentes são projetadas para a grande produção e para a monocultura. Assim, grande parte dos trabalhos realizados pelas agricultoras é braçal, o que limita a produção diversificada de alimentos.


Fonte: AS-PTA

Foto Capa: Giorgia Prates/AS-PTA

Fotos Galeria: Rede Sementes da Agroecologia

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